Quando o bebê não veio

 

 

Hoje são as roupinhas, o quartinho decorado, os planos para o futuro, a alegria de toda a família. Amanhã, o vazio. A dor de quem perde um bebê em plena gestação é um sentimento vivido a quatro paredes. Raras sãs as mulheres que querem dividí-lo, a não ser com as pessoas mais próximas. O que pode fazê-lo doer ainda mais. É o que acredita a professora portuguesa Maria Manuela Pontes. Ela resolveu dar voz às mulheres que perderam seu bebês em Maternidade interrompida – O drama da perda gestacional, que está sendo lançado este mês no Brasil pela Editora Ágora. O livro traz depoimentos emocionados de mulheres que viveram esta situação. Manuela também fundou, há oito anos, em Portugal, o Projeto Artémis, uma ONG que dá apoio psicológico e aconselhamentos para quem perdeu o bebê num aborto espontâneo. Para ela, que iniciou o projeto após duas perdas gestacionais, em 1999 e 2000, o tema é pouco divulgado. “É um tabu que deve ser quebrado para ajudar as mulheres a lidar melhor com a dor – e também com a vergonha e a culpa que emergem deste acontecimento”, afirma.

A autora  é hoje mãe de Vitória, seis anos, e Mateus, três anos

Em que momento você acreditou que deveria transformar sua própria experiência em um movimento de apoio às mães que tem a gestação interrompida?

Um dos meus maiores sonhos era poder vir a ser mãe. Era um dos meus mais vorazes desejos assim que me casei. Quando a gravidez aconteceu pela primeira vez, as palavras perda e aborto estavam longe dos meus mais remotos pensamentos. Acreditava que para sermos mães bastaria querer, e a natureza faria o resto. Mas contra todas as minhas expectativas, isso não ocorreu dessa forma matemática. Gravidez não era, afinal, sinónimo de nascimento. Perdi o meu primeiro filho. Apesar do sofrimento e do vazio que isso trouxe à minha vida, voltei a tentar, até porque todos me diziam que “foi um azar”. Acreditei nisso e reforcei as minhas crenças. Mas novamente a morte antecedeu a vida que gerava. Foi precisamente neste
momento que o mundo passou a ter os contornos duma realidade nua e crua. A maternidade tinha-se transformado, para mim, numa luta árdua entre a vida que queria gerar e a morte que se impunha a todas elas. Procurei ajuda, paz, serenidade, esperança…Mas não a encontrava em parte alguma. A sociedade mostrava-se implacável na sua indiferença. As pessoas ignoravam a dor que passamos e descobria um mundo muito vazio de significado. Pensei muitas vezes que talvez fossem raros estes casos. Ninguém com quem tentava conversar percebia o meu discurso e, pior que tudo isso, pediam-me para esquecer. Numa atitude que hoje reconheço como de auto-ajuda, decidi fundar uma associação vocacionada só e apenas para estas mulheres, que existem, que sofrem sozinhas, que também se encontravam tão sós no meio de tanta gente completamente ausente do seu luto.

 

Quais as principais ações do Projecto Artémis? Quantas mulheres são atendidas hoje?

O Projecto Artémis visa apoiar emocionalmente toda e qualquer mulher, que passe ou viva momentos de perda de gestação, com consequências psicológicas graves, negativas e depressivas. Para isso, a Artémis conta, não só com outras mulheres em situação idêntica, que contribuem heroicamente com as suas palavras e testemunhos, como por um grupo de interajuda, constituído por associadas sempre em contacto permanente. A Artémis conta ainda com a participação activa e dedicada de psicólogas que contribuiem para melhorar a estabilidade emocional de todas as mulheres que participem desta associação, e também de seus respectivos companheiros. Hoje, chegam à Artémis dezenas de mulheres por semana. Procuram informação, mas principalmente, apoio e partilha.

Qual o melhor aconselhamento psicológico para uma mulher que sofreu um aborto espontâneo?

Pelo meu percurso na associação, a melhor forma de apoio psicológico é a terapia de grupo e a auto-ajuda, isto é, o apoio formado em contexto de grupo entre as mulheres que vivenciaram a perda. Trocam experiências, motivam-se, partilham dúvidas, recebem e trocam emoções na mesma linguagem. Em grupo trabalha-se o luto, quebra-se a culpa, alimentam-se de esperança e aprendem a lutar contra o passado para caminhar para um futuro. Uma gravidez que aconteça após uma perda é vivida muito intensamente, quase sempre com níveis de ansiedade e medo latentes. Sem um eficaz acompanhamento, pode tornar-se num problema grave de auto estima, de insegurança e até de rejeição ao filho, após o nascimento.

A ONG planeja atuar em outros países?

Sim, é nosso desejo avançar para fora das nossas fronteiras, iniciar projectos em âmbito internacional, criar redes e estruturas de trabalho que nos possibilitem crescer por forma a tornarmo-nos mais intervenientes neste problema. Podermos começar a fazer uma mudança de mentalidades e de atuações.

Que sentimentos existem em comum entre as mulheres que tem a gravidez interrompida?

Existem dois sentimentos que prevalecem sobre uma quantidade de outros sentimentos, também eles importantes. No entanto, a Dor do Vazio e a Culpa da Perda são os mais complexos. A dor reflete a impotência que todas elas sentiram por não poderem reverter a situação. Nada puderam fazer para que o final fosse diferente. É uma dor muda e muito solitária. Apenas elas a vivem em porporções que ninguém mais vê ou consegue perceber. Dar à luz um bebé que não chorará, crava-lhes na alma a dor desse silêncio. A culpa traduz-se quase sempre por acharem que, enquanto mães que carregavam aquela vida, não foram suficientemente competentes para a protegerem.

No livro, você tem vergonha. Por que aflora tal sentimento?

A sociedade, ignorante nas suas conclusões, acha que nós (falo nós porque me incluo e vivi estas situações), devemos esquecer o filho que perdemos. Como se fosse possível esquecer uma vida que cresce no nosso interior e só porque ninguém mais a vê ou sente, acham que não devemos dignificá-la. A sociedade obriga estas mulheres a silenciar o seu choro, dizem-lhes que não vale a pena chorar, afinal, como afirmam “ainda nem era um bebé”. Olham-nas como se fossem diferentes. A vergonha surge porque o mundo ao seu redor menospreza aquele momento, não dignifica o seu luto, não suporta ouvir os seus sentimentos de tristeza. Os amigos não tocam no assunto, a família pede para esquecer, a sociedade não está preparada para elas.

Depois de tentativas que não deram certo, você acha que o seu olhar sobre seus dois filhos é diferente do que seria se não houvesse as perdas?

Acredito que muito diferente. A perda de um filho antes do seu nascimento nos ensina o valor de não o ter nas nossas vidas. O nascimento de minha filha Vitória permitiu-me um ensinamento que jamais aprenderia se não vivesse o luto dos dois bebês anteriores. Fui mãe, sofri a dor de os perder, mesmo sem nunca lhes ter visto o rosto, sem nunca lhes ter dado um nome. No entanto, hoje, ainda penso que o meu primeiro filho estaria com 8 anos e meio se fosse vivo. Ninguém se recorda mais desse bebé. Mas ele continua presente em mim. Esta ausência alimenta em nós um amor incondicional que, quando nasce um filho saudável, se torna magnânime, acima do bem e do mal, maior que a nossa própria alma. Os meus filhos não são apenas o resultado de uma vontade enorme de ser mãe. São o resultado da luta que travamos entre a morte e a vida. São o símbolo supremo da esperança. Quando os olho, lembro-me de como a vida pode ser tão efémera e ao mesmo tempo tão preciosa.

 

Matéria publicada originalmente na Revista Epoca

Cassia Cohen -Editora Chefe
Em 1º de abril de 2011 Cassia teve gêmeos,Christopher e Oliver.No dia 06 ,Oliver,o caçulinha faleceu devido a complicações de uma infecção intestinal(enterocolite necrosante ).Em 06 de abril de 2012,um ano depois da partida do seu filho,a revista eletrônica foi lançada. Cassia é Piauiense, mora na Flórida-EUA com seu marido,Stuie e seus filhos Vick e Chris.
http://mulheresferidasquevoam.com

Oi Meninas...e então o que vocês acharam?...comentem

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