Para Laura Cardoso, “Gabriela” representa a oportunidade de reviver diversas histórias de sua vida. O preconceito com as meninas do famoso bordel de Ilhéus, o Bataclã, ela viveu na pele ao decidir tornar-se atriz, na década de 40. “Não estava nem aí se comentavam que eu era puta. Vestia minha roupa e ia trabalhar de salto alto e cabeça erguida”, lembra. Outra identificação é com a paixão de Malvina (Vanessa Giácomo) pela literatura. Quando era adolescente, Laura trocava com o pai alguns livros. Ele lia e indicava para a filha. Até que ela decidiu comprar um por conta própria. Animada, leu Capitães de Areia, também de Jorge Amado, autor da obra que inspirou a minissérie da TV Globo. Senhor Adriano, um comerciante português que fazia de tudo para agradar a filha, dessa vez, não se conteve: “Este livro é pesado para você, Laurinda”, afirmou. Pois é, a paulistana Laura, na verdade, é Laurinda. O nome não era bom para uma atriz. “Não era sonoro”, diz ela, divertindo-se ao contar suas histórias.
O sorriso fácil, a leveza, o profissionalismo e a humildade de Laura chamam a atenção. Um exemplo? “Desculpe o atraso. Você já almoçou?” Foi assim que ela se apresentou à equipe de QUEM. Mas não estava atrasada, e sim fazendo a maquiagem para a foto da revista. E também não havia almoçado. Com mais de 60 anos de carreira, a atriz ganhou duas vezes o Prêmio Shell, um dos mais importantes do teatro, e, em 2006, foi condecorada com a Ordem do Mérito Cultural, homenagem do governo brasileiro por seu trabalho.
O rosto marcado por seus 84 anos e o corpo frágil escondem uma guerreira. Laura teve duas filhas com o único homem de sua vida, seu marido, o ator e escritor Fernando Balleroni. Ficou viúva há 35 anos, depois de 30 anos de casamento, e superou a dor da perda de um filho. “Entrei na maternidade com ele na barriga e saí com os braços vazios. Essa dor é indescritível”, emociona-se. Logo depois, retoma o tom descontraído da conversa, declarando seu amor pelas filhas, Fernanda, 46 anos, e Fátima, 52, e pelo bisneto, Fernando, de 12 anos. “Ele é meu último amor, depois dele, não vou amar mais ninguém”, acredita.
QUEM: Como recebeu o convite para viver a Dorotéia, em Gabriela?
LAURA CARDOSO: Tive medo de não acertar na aparência, no sotaque. Sempre tenho medo. Tenho responsabilidade com o que faço. Fico pensando na personagem dia e noite, me dedico, leio, pesquiso, torro a paciência do diretor e do autor.
QUEM: Mesmo depois de tantos anos?
LC: Eu me sinto começando no escuro.
QUEM: Em 1946, a senhora foi fazer um teste na Rádio Tupi sozinha. Seus pais apoiaram sua escolha?
LC: O meu pai me apoiou, foi o primeiro a saber. Fui fazer o teste porque as histórias no rádio me encantavam. Rádio estimula a imaginação, faz você fantasiar. É como o livro. Já a televisão está com tudo estampado e a gente fica meio bobo olhando.
QUEM: E sua mãe?
LC: Ela não gostava que eu trabalhasse na rádio. Naquele tempo, a mulher que era de teatro, rádio, circo era considerada prostituta. Mas nunca liguei para isso. Aos poucos, ela foi aceitando.
QUEM: Foi vista como rebelde?
LC: Sempre! Os vizinhos da rua onde morava faziam comentários quando eu saía de casa, falavam: “Olha lá, ela não presta!”. Eu nem ligava. Não estava nem aí se comentavam que eu era puta, vestia minha roupa e ia trabalhar de salto alto e cabeça erguida. O meu trabalho era sério.
QUEM: A senhora tem duas filhas e duas netas. Até que veio um menino, o bisneto…
LC: Sim, minha família é toda matriarcal, tudo mulher, não gosto (risos). Quando Fernando veio, falei “opa, um homem!” (risos). É diferente. A menina é mais fresquinha, o menino é mais objetivo, mais forte. Tive um menino entre minhas duas filhas, mas ele foi embora.
QUEM: Faleceu ainda bebê?
LC: Sim, naquela época não se falava de incompatibilidade de RH entre os pais. Meu filho, que se chamava José, nasceu com um problema por causa disso e faleceu três dias depois, no hospital. Achei que tinha sido por causa de um tombo que levei, já com barrigão. Na verdade, acho que o que levou o meu filho não foi a queda, foi esse problema no sangue. E, depois disso, tive a Fernanda.
QUEM: A senhora chegou a sair do hospital com ele?
LC: Entrei no hospital com um filho na barriga e saí com os braços vazios. Ele viveu por três dias. A perda foi terrível. Ficou um vazio grande em mim. Nem gosto de falar disso. É terrível, muito doloroso.
QUEM: Criou suas duas filhas sem dar pausa no trabalho. Como conciliava?
LC: Sentia uma culpa que era só minha, não dava para dividir com ninguém. Mas tive minha mãe, uma bênção. Ela ficava em casa com as crianças e eu trabalhava tranquilamente. Nunca fui a uma reunião da escola das minhas filhas. Renunciei a estar mais perto delas por meu trabalho.
QUEM: Arrepende-se?
LC: Não. Era a minha vida. E vida é uma só. Admiro mães que abrem mão de tudo para se dedicar aos filhos. Mas nunca tive vontade de fazer isso. Não me arrependi de trabalhar, não.
QUEM: Pensou em fazer outra coisa em vez de atuar?
LC: Não sei fazer outra coisa, não sei nem cozinhar.
QUEM: Mas cuida da casa?
LC: Ah, sim. Toda mulher sabe cuidar da casa, mulher que diz que não sabe é mentira. E adoro ir à feira. Acho a feira um lugar colorido, interessante, muita gente para conversar. Acho muito divertido.
QUEM: Mora sozinha?
LC: Morava sozinha desde que meu marido foi embora, mas a Fernanda se separou e está comigo.
QUEM: E envelhecer, teve alguma crise?
LC: Nunca! Se a pessoa não for burra, ela vai aceitando envelhecer sem drama. Nunca tive crise, nunca fui a psicanalista, nada disso!
QUEM: Teve outro relacionamento depois de seu marido?
LC: Não! Só o meu marido mesmo. Foi um grande amor. Depois se tornou uma amizade, um companheiro… Era uma pessoa maravilhosa como marido, como pai, como gente. E era muito bonito fisicamente.
QUEM: Depois dele, não quis mais ninguém?
LC: (Risos) Não. Não encontrei mais ninguém que me despertasse nada.
QUEM: É difícil ver uma mulher passar a vida inteira apenas com um homem.
LC: Mas o Balleroni ficou muito doente nos últimos anos de vida. Ele era diabético. Aí, perdeu a vista. Depois, perdeu uma perna. Não me achei no direito de largar esse homem e fiquei com ele até o fim. Ele foi embora com 55 anos, eu tinha 49. Não passava pela minha cabeça largar a pessoa que ficou comigo uma vida inteira na hora em que não estava bem.
QUEM: Em Gabriela, a Lindinalva (Giovanna Lancellotti) sofreu abuso do noivo e acabou sendo culpada por isso. Acredita que esse tipo de situação ainda aconteça?
LC: Até hoje colocam a culpa na mulher em questões como essa. Até hoje um homem mata a mulher porque acha que ela é propriedade dele.
QUEM: Mas as mulheres conquistaram muitos direitos. Como vê, por exemplo, quando uma mulher toma a iniciativa ao cantar um homem?
LC: Eu gosto (risos). Acho saudável não ficar dependendo do macho para seduzir.
QUEM: Mudaria alguma coisa na sua história?
LC: (Pensa) Não. Minha carreira foi maravilhosa, minha vida foi como eu quis. Meus pais, meus filhos, os homens que amei, as mulheres.
QUEM: Os homens? Não foi só um?
LC: Que mulher ama um homem só (risos)? Mas estou dizendo as pessoas que amei, de uma forma geral (risos).
QUEM: Tem medo de morrer?
LC: Ter medo de morrer é burrice. Só peço a Deus que seja tranquilo. E para trabalhar até quando Ele quiser. Nunca pensei em parar. Só depois da morte.
Materia retirada da revista Quem -Edição 621 (03/08/2012)