GLÓRIA PEREZ PERDEU SUA MESTRA NA TV PARA UM CÂNCER, SUA FILHA PARA DOIS ASSASSINOS E UM DE SEUS FILHOS PARA UMA SÍNDROME RARA. NESTE ANO, DESCOBRIU E RETIROU UM LINFOMA NA TIREOIDE. NUNCA ENTREGOU OS PONTOS, NUNCA PAROU DE TRABALHAR. EM MEIO AOS CAPÍTULOS FINAIS DE CAMINHO DAS ÍNDIAS, A MAIS POLÊMICA NOVELISTA BRASILEIRA DIZ QUE QUIMIOTERAPIA NÃO É UM BICHO DE SETE CABEÇAS E QUE CONTINUA COM TESÃO PELA VIDA
Glória Maria Ferrante Perez nasceu em 1948 em uma Rio Branco (AC) que ela define como “uma clareira em meio à floresta amazônica”, povoada por gente que era filha do boto, apanhava do caboclinho da mata e via nas ruas os contorcionismos da menina borracha. Uma cidade quase isolada que fertilizou sua imaginação para toda uma vida, ao lado dos livros que devorava na biblioteca do pai, juiz federal e escritor. “Tudo que é extraordinário para os outros sempre foi natural para mim”, explica.
A autora de novelas como O Clone, América e Caminho das Índias, vista diariamente por mais de 50 milhões de brasileiros, só foi conhecer um aparelho de televisão com 16 anos, quando se mudou para Brasília com a família em 1963. Foram necessários outros 20 anos para que ela – já casada e com três filhos, formada em história e morando no Rio – começasse a escrever seu primeiro folhetim para a TV. Glória nunca tinha assistido a uma telenovela inteira, mas foi convidada para ser colaboradora de Janete Clair em Eu prometo, em 1983; com a morte da rainha do gênero antes do fim, terminou a obra sozinha, em uma passagem de cetro involuntária.
Depois de outras novelas de sucesso na Manchete (Carmem) e na Globo (Barriga de aluguel), veio o momento mais trágico e absurdo de sua vida – e esse ninguém desconhece. Em meio às gravações da novela De corpo e alma (1992), Daniella Perez, filha de Glória que interpretava Yasmin, foi assassinada aos 22 anos a golpes de tesoura por Guilherme de Pádua, seu par em cena, e pela mulher deste, Paula Thomaz.
“A JANETE CLAIR ME DISSE: ‘VOU TE DAR MAIS RESPONSABILIDADE PORQUE NÃO SEI SE VOU CHEGAR AO FIM DESSA NOVELA, MAS QUERO QUE ELA CHEGUE AO FIM'”
Como se não bastasse enfrentar publicamente a maior dor que pode ser infligida a um ser humano – a perda repentina e brutal de um filho –, Glória teve que lidar com lances de surrealismo bem brasileiros. De um lado, o cardeal dom Lucas Moreira Neves veio a público insinuar que Glória era coautora do crime, por escrever para um meio que demoliu “os mais autênticos e inalienáveis valores morais”. Do outro, uma facção criminosa lhe escreveu uma carta prometendo eliminar os assassinos da filha assim que ela falasse uma palavra específica em qualquer entrevista para a TV.
Em vez de ceder à vingança ou à prostração, Glória mergulhou no trabalho, voltando a escrever sozinha a novela dois dias depois do assassinato, e na luta contra a impunidade, iniciando uma campanha que transformou o homicídio em crime hediondo. Seu ex-marido Luiz Carlos Saupiquet Perez, pai de Daniella, nunca conseguiu sair do luto: morreu de leucemia dois anos depois da filha. “Ele não aguentou a dor da morte da Dany. Definhou.”
A perda de Daniella não seria a última vez que a ordem natural da vida – os pais morrerem antes dos filhos – se inverteria na trajetória da novelista. Em 2002, seu caçula, Rafael, que nasceu com uma síndrome raríssima que dificultava sua fala e seus movimentos, morreu aos 25 anos com uma infecção. “Dor não se compara, mas há uma diferença grande em perder um filho por causas naturais ou porque dois psicopatas decidiram assim”, afirma Glória, mãe de mais um filho, Rodrigo.
Neste ano, Glória teve de encarar mais uma vez a ideia da finitude – desta vez, porém, olhando no espelho. Em abril, ela passou por uma cirurgia de urgência na tireoide para a retirada de um linfoma, do mesmo tipo do que acometeu a ministra Dilma Rousseff. A doença não se espalhou pelo corpo, mas o médico da novelista preferiu recomendar seis sessões de quimioterapia preventiva.
Como na época da morte de Daniella, Glória decidiu não parar de trabalhar. Continuou escrevendo sozinha os capítulos de Caminho das Índias, inclusive no consultório do médico, em dia de sessão. Até o dia 11 de setembro, quando a novela termina, os telespectadores terão garantidas suas doses diárias do estilo Glória Perez, a mais controversa novelista brasileira em atividade.
Entre os capítulos da novela e as sessões de quimioterapia, Glória arranjou tempo para responder a uma série de perguntas da Trip por e-mail e para um encontro ao vivo em seu escritório com janelas abertas para Copacabana, fotos de Daniella na tela do computador e uma frase de Nelson Rodrigues afixada junto a sua mesa de trabalho: “Só os imbecis têm medo do ridículo”.
Aos 61 anos, solteira, Glória fala com a franqueza de quem já perdeu muito e tem pouco a esconder. Com uma peruca que adotou depois do início do tratamento, ela fez apenas um pedido ao fotógrafo: “Quero aparecer sorrindo, não quero nada triste. Estou numa fase boa. A novela está fazendo sucesso, e o susto inicial com o linfoma passou. Não quero que ninguém associe quimioterapia com morte. Ela não é o bicho de sete cabeças que eu pensava”. Para Glória, não é sua obra e sua vida que soam inverossímeis neste momento, e sim a morte.
Sua família é do Acre?
Meus pais já nasceram em Rio Branco. Mamãe era filha de piauiense com cearense, papai era filho de italianos. Meu avô materno fez parte do exército de Plácido de Castro na conquista do Acre. Já meu avô paterno era um operário mecânico que fugiu de São Paulo por causa do seu envolvimento com o movimento anarquista. Se casou com vovó quando ela já era viúva e mãe de quatro filhos. Segundo costume da época, uma vez viúva, ela foi ao encontro da mãe, que estava visitando o Acre, e lá conheceu meu avô e se casou. Nasceram então meu pai e mais três tios. Tenho só um irmão, o Saulo, que é médico.
De corpo e alma é marcada pelo assassinato de sua filha. Onde você encontrou forças para continuar a escrever a novela?
Não parei de trabalhar porque precisava manter um pé no concreto pra não enlouquecer. Segui o conselho do Manuel Maurício, um professor de história que marcou toda uma geração que passou pelo IFCS [Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ]. Foi preso, torturado e exilado durante a ditadura militar. Contando a experiência da prisão, ele nos dizia que, se algum dia estivéssemos diante de uma situação semelhante, lembrássemos da sua caixa de fósforos. E contava que, na prisão, sem saber se era dia ou se era noite, ele descobriu, através de uma caixa de fósforos, a maneira de sobreviver, de manter a sanidade, o vínculo com o real: tirando os palitos, um por um, e tornando a colocá-los na caixa, um a um. Eu me sentia assim: em carne viva, sufocada, atordoada e ainda por cima agredida. Fiz dos capítulos daquela novela a minha caixa de fósforos. E enquanto os escrevia, mecanicamente, sem mais nenhum envolvimento emocional com a trama, ganhava força para correr atrás das provas que condenaram os assassinos da minha filha.
Como você enxerga hoje as acusações daquela época de que a mistura entre a realidade e a ficção que você criou na novela contribuiu para a morte de Daniella? É possível perdoar quem falou isso?
Não, não é possível perdoar. Pisar em mãe com filho morto no colo é o cúmulo da crueldade, da covardia e da calhordice. Aliás, a figura que puxou a corrente já tinha dado ampla demonstração de todos esses atributos quando, na época da ditadura, recusou-se a testemunhar na apuração da tortura e do assassinato de frei Tito.
Quem era essa figura?
Prefiro não falar mais o nome dele.
Você está escrevendo um livro sobre o assassinato de Daniella. Qual é o objetivo dessa luta para que a história dela não seja esquecida?
Minha filha foi vítima da ambição de um psicopata, que se julgou prejudicado por não aparecer em dois capítulos da novela que eu escrevia. Na época havia surgido o Disk Denúncia, e eu tinha feito uma trama para divulgar o telefone do serviço. Capítulos entregues, fico sabendo que a única restrição do doutor Roberto Marinho às novelas, porque ele não interferia mesmo, era no que dizia respeito a sequestro. Tive que recolher os capítulos e reformular o bloco de seis numa única noite. Claro, não era possível reescrever: fui cortando a parte do sequestro e aumentando as demais. Com isso, o assassino ficou fora por dois capítulos. Na época, Dany o estava evitando, como outros colegas, chocada com as insinuações para que ela interferisse no aumento de seu papel. Ele juntou tudo isso, achou que era prejudicado, armou a mão da mulher e, juntos, cometeram o crime. Isso tudo está lá, no processo, e foi por isso que ambos foram condenados com os agravantes que foram. Fiz uma página na internet em que começo a armazenar as provas do processo, o imenso material que tenho, as entrevistas do assassino, gravadas em fitas que me foram dadas pelas repórteres, e tudo isso está lá, contado por ele mesmo.
Por que é importante que essa discussão seja pública, em vez de mantê-la na esfera íntima?
O que é íntimo é o luto. É a dor da gente, que não sai nos jornais. A luta por justiça é pública e diz respeito a toda a sociedade. Não permitir que versões fantasiosas se sobreponham à verdade dos fatos é parte de fazer justiça. E a verdade está lá, no processo, que aliás é público. É só divulgar.
Como você vê o fato de que os assassinos de sua filha estejam soltos, levando uma vida normal?
É uma aberração à brasileira. Em qualquer lugar em que se tenha respeito pela vida humana não dá pra imaginar a hipótese de estar num restaurante ao lado da mesa onde Suzane von Richthofen, que mandou matar os pais a pauladas, jante tranquilamente, onde Pimenta das Neves, que matou covardemente a ex-namorada jornalista, tome champanhe ou onde Elias Maluco, que comandou a morte e a tortura do Tim Lopes, esteja presente.
A ideia de defender a pena de morte passou pela sua cabeça em algum momento?
Nunca defendi a pena de morte. Minha luta foi sempre contra a impunidade. Aliás, o que eu tive de oferta pra liquidar os dois assassinos. Tenho até cartas de uma facção de dentro da cadeia, dizendo que bastava que eu dissesse determinada palavra durante qualquer uma das entrevistas que dava na TV para que eles fossem mortos em menos de meia hora. Eu não disse essa palavra! Estive sempre atenta para não dizer.
Hoje você pode dizer qual era a facção e a palavra?
Melhor não. Eles ainda estão por aí.
Como você blindou seus outros filhos durante o processo?
Tive de preservar muito o Rodrigo e o Rafinha, evitar que aparecessem em fotografias e pudessem ser reconhecidos na rua. Foi muito pesado pra eles a fase do processo.
Em 2002, você perdeu seu filho Rafael, por causas naturais. É possível comparar as duas perdas?
Eu sabia que o Rafinha não viveria muito, mas é difícil conviver com essa ideia, e a gente sempre tem esperanças. Ele tinha uma síndrome muito rara, decorrente de um tratamento de rádio que fiz para a tireoide. Fiquei grávida exatamente nessa época. O médico avisou que ele poderia nascer com problemas, mas não tive coragem de fazer o aborto e nunca me arrependi. Rafinha foi muito especial em nossas vidas. Sinto uma falta imensa dele e da Dany. Dor não se compara, mas há uma diferença grande em perder um filho por causas naturais e perder porque dois psicopatas decidiram assim.
Qual era a síndrome?
Não sei te dizer o nome agora. Era muito rara. O médico levava o caso para congressos internacionais, porque só havia mais um na América Latina. O próprio médico não fechava um diagnóstico, não comparava com outros casos. Rafinha tinha dificuldades motoras e de fala, mas escrevia e-mails inteligentíssimos.
Como era seu relacionamento com o pai de seus filhos?
Nos dávamos bem. Ele morreu dois anos depois do assassinato da Dany. Não aguentou a dor. Ele tinha se casado de novo, e desse casamento teve duas filhas que hoje moram em Maceió, com a mãe. A mais velha, a Manu, é muito ligada a mim, me considero sua quase mãe. Quase todo ano vem passar uns dias comigo. Com a mais nova, Maria Luiza, tenho menos contato, nasceu quando eles já não moravam aqui.
Você diria que seu ex-marido morreu de tristeza?
Sim. Ele definhou.
De onde vêm essa franqueza e essa objetividade com que você responde suas perguntas?
Sempre fui muito objetiva. É uma característica minha. Você perde muito tempo embrulhando as coisas. A vida é muito rápida. Tem muita coisa para você ver, para aprender, para perceber. Eu não perco muito tempo ensaboando. Meu pai me deixou uma lição de vida que foi essencial e que eu compreendi desde cedo: “Não agrida a realidade”. Quando acontece alguma coisa, eu não perco tempo fantasiando em cima, eu parto do fato.
Você já declarou que o assassinato de Daniella foi muito mais difícil de enfrentar que o linfoma. Mas a ideia de finitude não te assusta?
Sempre fui muito consciente da nossa finitude. E saber que nascemos com prazo de validade não é ruim não. Você até saboreia mais cada momento da vida quando tem presente que ela não é eterna. Meu médico, Daniel Tabak, disse que viverei o mesmo tempo que viveria se não tivesse aparecido o linfoma. Não há doença ativa no meu organismo, o tratamento é preventivo, de modo que a questão da finitude não assumiu o primeiro plano. Tenho pensado, sim, que a quimioterapia não é o bicho de sete cabeças que eu pensava que era. Que as pessoas pensam que é. Isso me surpreendeu. Eu estou escrevendo uma novela das oito sozinha, com quimioterapia. Tenho atravessado muito bem o tratamento, estou conduzindo meu trabalho – com mais esforço, é claro, mas conduzindo.
Como entra a vaidade nessa questão? Você não se incomoda com a perda de cabelo, por exemplo?
Cabelo? Se o que está em jogo é a sua cabeça você não pensa em cabelos. Cabelos nascem de novo. E o que é perder cabelos pra quem perdeu dois filhos?
Você já conversou com a ministra Dilma Rousseff sobre o tratamento?
Não conversei porque não conheço a Dilma. Mas torço muito pela plena recuperação dela e do vice-presidente, o José Alencar, um homem admirável, que nos dá cotidianamente uma lição de vida. Gosto de gente que enfrenta.
Você tem alguma religião?
Fui criada entre uma avó super-religiosa e um avô anarquista. Minha avó fazia os andores para a igreja e o café da manhã para os padres. Meu avô era um anarquista que abominava tudo ligado a religião. Diria que tenho um comportamento cristão. Mas a igreja, como instituição, não me interessa.
É possível ser realmente feliz depois de perdas do tamanho das que você enfrentou?
Plenamente? Nunca mais.
Mas você ainda encontra prazer em seu cotidiano?
Claro. Tenho enorme prazer em conviver com minha família e amigos, ler, viajar, ir ao teatro, caminhar na praia, tomar água de coco e ver o mundo passar. Sou madrinha da gafieira Estudantina aqui no Rio. Gosto muito de dançar. Gosto de Carnaval. Gosto de vida. Sempre fui ligada à vida.
Revista Trip