– Há quatro aspectos: a pessoa que morreu, o tipo de morte, o suporte psicossocial que o enlutado tem e a sua estrutura psíquica. Se tem histórico de perdas, os problemas psíquicos podem incapacitá-lo para enfrentar mais essa. Julga-se que o luto mais difícil é o da morte de filho por suicídio. Mas como diz a música de Caetano Veloso, cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é.
ISTOÉ –Há outros lutos assim?
MARIA HELENA BROMBERG -A perda do parceiro por Aids também não tem receptividade. Morte do ou da amante. O aborto (provocado ou não), que é visto como um não evento.
ISTOÉ –Como assim?
MARIA HELENA BROMBERG – No aborto não aconteceu o nascimento nem a morte convencional. A reação das pessoas é minimizar a perda. Falam: “Não se preocupe, logo você tem outro.” Fizemos uma pesquisa com 60 mulheres adultas que tinham abortado na adolescência. Isso redundou até em esterilidade. A mulher pode ter um trauma psicológico e não engravidar novamente.
ISTOÉ –O luto não autorizado influencia a futura mãe?
MARIA HELENA BROMBERG – Sem dúvida. Atendi uma família que trouxe a filha adolescente para a terapia por achar que ela estava rebelde. Na entrevista com mãe e filha ficou clara a dificuldade de relação entre elas. A mãe não se sentia confortável. Superficialmente, pareciam conflitos típicos de adolescente, mas havia algo mais. O segredo era um aborto que a mãe fizera antes de a menina nascer, um luto que a mãe carregava ainda.
ISTOÉ –E como tratar isso?
MARIA HELENA BROMBERG -Mais profundamente com a mãe. Ao fim ela resolveu revelar o segredo e livrou-se do peso. Parece mágico, mas não é. Foi um processo longo e doloroso para ambas, o que dá para dimensionar como a coisa se arrasta.
ISTOÉ –Existe um tempo padrão para superar o luto?
MARIA HELENA BROMBERG – Essa é uma questão temerária. Pode-se achar que morrer ou perder alguém acontece numa boa porque o tempo é o melhor remédio.
ISTOÉ –E não é?
MARIA HELENA BROMBERG -o tempo ameniza a dor, mas também é capaz de gerar um luto crônico. O que poderia ser uma passagem de um estado para outro, pode permanecer na tristeza. No luto crônico, quanto mais o tempo passa, pior fica. É também chamado de luto complicado.
ISTOÉ –Há mais tipos de luto complicado?
MARIA HELENA BROMBERG – Tem o adiado, aquele que a pessoa diz que está bem, não encara o sofrimento, chega a ficar eufórico. Um dia morre o peixinho da irmã da vizinha e ela desaba.
ISTOÉ –Não existe o luto adiado para sempre?
MARIA HELENA BROMBERG -Não. As pessoas têm que realizar suas perdas. Há um estudo feito na Inglaterra, a partir dos prontuários de pacientes psiquiátricos, em que se pesquisou a vida deles. Havia uma alta incidência de perda de pai ou mãe na infância. Eram pacientes com quadros psiquiátricos severos. Este é um exemplo de que o luto não realizado pode se manifestar não só na tristeza padrão, mas em doenças psiquiátricas. É diferente do luto distorcido, em que a pessoa aparenta estar bem, mas não está. Tem filhos para criar, trabalho e não consegue dar conta de tudo. Então disfarça.
ISTOÉ –E sobre o tempo de duração do luto?
MARIA HELENA BROMBERG – Trabalhamos por um parâmetro de um ano, mas não é regra. Há datas marcantes como o primeiro aniversário da pessoa que morreu. O primeiro Natal, etc. São situações de celebração que, depois da perda, marcam a ausência. Isto é positivo porque faz com que a pessoa se dê conta da realidade da perda. É importante que essas datas não sejam negadas. Quando completa um ano da morte, acontece um fenômeno chamado “reação de aniversário”. Revive-se o ano que passou, a dor. Se perguntam por que estavam melhor e a dor voltou com tudo?
ISTOÉ –E a partir daí muda a relação com a perda?
MARIA HELENA BROMBERG – Do ponto de vista da terapia, é muito importante que se possa trabalhar o enlutado durante o primeiro ano da perda para o terapeuta estar junto nesses momentos. Do ponto de vista clínico, é muito mais complicado quando o enlutado chega ao consultório depois de cinco, dez anos da perda. As coisas estão mais cristalizadas. Quando entra no segundo ano, faz um certo platô emocional, sem que tudo tenha sido elaborado.
ISTOÉ -Então, depois de uma grande perda, é possível ser feliz?
MARIA HELENA BROMBERG – É claro, mas precisa ressaltar que o enlutado odeia pensar que vai esquecer o ente que morreu. Ele não pode nem quer esquecer. A terapia trabalha na transformação dessa ausência numa memória. Porque o morto vive na memória de quem conviveu com ele. Esquecer é aterrorizante porque é não ter mais. A memória é saudável.
ISTOÉ –E por que algumas pessoas não se recuperam? Há quem tenha morrido de tristeza. A terapia pode reverter isso?
MARIA HELENA BROMBERG – Depende do tipo de relacionamento que a pessoa tinha com o morto. Tem dependência que se manifesta em coisas sutis do cotidiano, que no dia-a-dia não se percebe. Há viúvas, por exemplo, que não sabem sequer que roupa usar, que nunca tomaram decisões com relação à família. Era sempre o marido quem fazia. Muitas vezes tem um lado fraco e um forte. Se o fraco morre, o outro vai precisar de alguém que substitua aquela dependência que classificamos de cuidadora.
ISTOÉ –E os lutos coletivos, como foram os de Ayrton Senna e Lady Di?
MARIA HELENA BROMBERG -Há dois aspectos. Um é o do papel da mídia na intensificação desses lutos. O outro é a dor da perda do ídolo refletida na vida de cada um. Quando o Senna morreu, choramos nossas perdas, pequenas e grandes. Perdas relacionadas ao orgulho de ser brasileiro, aos fracassos de cada um. A perda do filho que tinha a mesma idade dele. Fui à Inglaterra para os funerais da princesa Diana. O choro daquela gente não era só porque a princesa era querida. Mulheres choraram seus lutos pela princesa e por maridos inoperantes, traidores, jovens choraram por pais omissos. Cada um deságua seus lutos quando um ídolo se vai. Ainda que inconscientemente.
Primeira brasileira a tornar-se mestra e doutora em psicoterapia de pessoas enlutadas, a psicóloga Maria Helena Bromberg, 48 anos,Ela se dedica há uma década à pesquisa sobre a morte e suas consequências nos vivos. Professora da disciplina Luto e Morte na Família e orientadora do pós-graduação de Psicologia da PUC de São Paulo, ela dirigiu a clínica Ana Maria Popovic, também da PUC, onde criou o Laboratório de Estudos e Intervenções Sobre o Luto (LELu). Para ela, não é somente a morte que causa a dor do luto.